Andie Anderson na redação do bairro? Entenda a diferença da Jornalista de Moda do cinema para a da vida real
O cinema hollywoodiano já retratou as mulheres jornalistas em diversas obras, produzindo e difundindo imagens estereotipadas. Entrevistamos 5 jornalistas para saber como elas percebem esse meio.
As comédias românticas hollywoodianas tendem a retratar as protagonistas mulheres de uma certa maneira, em especial as jornalistas de moda. Em filmes como “Como Perder um Homem em 10 dias”, “De Repente 30”, “O Diabo Veste Prada” ou “Os Delírios de Consumo de Becky Bloom”, as jornalistas são representadas como mulheres bem-sucedidas, com um lifestyle baseado em pouco trabalho e muito prestígio, com autonomia para a produção de matérias e editoriais que em sua grande maioria levam meses para serem finalizados. Além disso, com frequência as personagens se envolvem em dilemas éticos e situações que dificilmente seriam aceitas em uma redação real.
Já o jornalismo de moda é retratado como uma bolha de futilidade, que vende uma gama de superficialidade ao seu público – também fútil, comportamento que é enfatizado pelas próprias protagonistas. Mas você já se perguntou o porque da escolha desse tipo de protagonista? Simples: os roteiristas utilizam da figura da colunista, como uma forma de introduzir a personagem principal no mundo. Assim, a jornalista pode estar em qualquer lugar e se utilizar de qualquer narrativa. Para a jornalista de moda especificamente, o cinema cria um cenário de glamour que as diferencia dos demais setores da profissão, trazendo aspectos de privilégio e exclusividade, juntamente com a noção de futilidade e irrelevância que precede as pautas femininas de moda e beleza.
A discussão do tema nas redes sociais é antiga. Em uma publicação feita no X, a jornalista americana Chloe Caldwell, residente da cidade de San Diego na Califórnia, e criadora de conteúdo sobre viagens e lifestyle comenta: “the way rom-coms glamorize women in journalism”, o que quer dizer, em uma tradução literal “o jeito como as comédias românticas glamourizam mulheres no jornalismo”. A partir do comentário da jornalista, outros usuários da rede deixam suas opiniões como os descritos a seguir: “eu tenho a teoria de que ser uma jornalista em uma revista de moda nos anos 2000 é o equivalente a ser uma influenciadora digital nos dias de hoje. Super trendy, famosa, bem-sucedida, o sonho de toda garota”; “Infelizmente, eles também mostram mulheres envolvidas em comportamentos antiéticos, como namorar / se apaixonar por suas fontes”; “Eles realmente me fizeram pensar que eu poderia pagar um Brownstone no Soho com o salário de um escritor. Não durmo há dias”; “O que você quer dizer? Sempre faço reuniões diárias no armário de moda com minhas duas melhores amigas que também trabalham no mesmo lugar que eu?”; “Você quer dizer que a Vanity Fair não encomenda um artigo de quatro páginas para cada escritor novato? Quer dizer que as pessoas não têm meses apenas para escrever um artigo?”; “Mataria pelos salários de revista das jornalistas de comédia romântica”; “Me ferrou pra vida… pensei que o trabalho consistia nisso”; entre outras respostas.
Da mesma forma que Chloe, Sophie Vershbow – que escreve para o The New York Times e New York Magazine, assim como Vogue, Allure e Esquire – compartilha com seus seguidores do X o seguinte post: “tired: rom-coms sold us lies about love. wired: rom-coms sold us lies about building a career in journalism”, isto é, “cansada: comédias românticas nos venderam mentiras sobre o amor. ciente: comédias românticas nos venderam mentiras sobre a construção de uma carreira no jornalismo”.
Conforme pensava no desenrolar dessa matéria, mais sentia a necessidade de entender, e por consequência, distinguir as principais diferenças e similaridades do que é retratado nos filmes e do que acontece de fato em uma redação real. Para isso, foram ouvidas cinco jornalistas consolidadas no mercado de moda nacional.
Nas entrevistas, as jornalistas foram questionadas se percebiam que as comédias românticas dos anos 2000 construíram uma narrativa glamourizada em torno do jornalismo de moda. A jornalista 5 afirma que os filmes retratam esse nicho como algo fútil, com muita rivalidade no ambiente de trabalho e a questão de precisar ser workaholic demais. “É uma geração inteira criada por esses filmes e essas séries. E que, enfim, ficou meio delulu achando que é tudo perfeito. E, nossa, meu primeiro estágio vai ser na Vogue, numa revista incrível. Não é isso aí”.
Em Como Perder um Homem em 10 dias, o filme só retrata a protagonista com seriedade, quando a própria abandona o emprego na revista feminina para “fazer jornalismo de verdade”.
Ou seja, a protagonista Andie Anderson, só passa a ser vista como relevante quando abandona os conteúdos relacionados à feminilidade, e parte para um âmbito mais masculinizado – como o caso da política. A jornalista 3 comenta que os filmes queriam tornar o trabalho parte da personalidade da jornalista de moda.
“Ela é inteligente, mas ela ainda é uma garota, sabe? Tem uma linha ali que eles não queriam cruzar. Por isso que a revista sempre era o mau lugar, sabe? Ela é inteligente, mas não é demais. Por isso que o filme sempre acaba quando ela vai pro Hard News, porque agora ela foi inteligente”.
A jornalista 2 concorda com a jornalista 3. Ela diz que possui uma percepção pior da redação em si, do que da jornalista, da personagem principal desse tipo de filme. Segundo ela, existe um estereótipo de que as jornalistas de moda e beleza são fúteis, mas os filmes tentam provar justamente o oposto: “Ah, eu mostrei a menina que só escreve de batom. Mas daí mostra exatamente o contrário. Tipo assim, de fato ela está tentando outra coisa e o mercado não deixa”.
Em De Repente 30, Jenna Rink é vista pelos colegas de trabalho como traiçoeira, disposta a sabotar os próprios amigos, assim como o veículo onde trabalha, apenas para alcançar uma ambição profissional. Todavia, a virada de chave ocorre quando a protagonista percebe que, para se tornar uma mulher de sucesso, precisou se livrar da bondade e da inocência na qual via o mundo, e adquirir uma abordagem mais radical. Assim como em outros filmes do gênero, as mulheres que conquistam altos cargos de poder são sempre vistas como pessoas frias e manipuladoras.
Já em Os Delírios de Consumo de Becky Bloom, além dos estereótipos de beleza feminina, o filme aborda dilemas éticos como: a repórter que se envolve romanticamente com o chefe; o uso do emprego na revista de finanças apenas como uma oportunidade para chegar onde deseja; além da hipocrisia presente na coluna de dicas financeiras, proveniente de alguém que sequer consegue quitar as próprias dívidas. Mais uma vez, a credibilidade da jornalista é posta à prova, a colocando em uma posição de ser indigna de confiança.
De acordo com a jornalista 4, os filmes retratam uma visão muito antiga do que significa ser jornalista de moda. No cinema, a visão abordada é que a jornalista é "a garota meio burra, que só gosta de roupa bonita, que não sabe o que está fazendo, que está sempre perdida e que precisa passar por muito perrengue para dar certo". Para ela, se Hollywood fosse fazer novos filmes de jornalistas hoje, elas seriam retratadas de outra maneira, visto que a sociedade evoluiu muito e pôde entender que o papel da mulher vai muito além de "querer agradar todo mundo, de querer ser perfeita, de precisar ser super magra...".
Já a jornalista 2, diz que na prática, ser jornalista é travar uma batalha por dia. "Acho que os estereótipos são muito ruins pro que a gente faz na vida real e pro que a gente traz. Pra mim é muito gigante quando uma pauta nossa viraliza, porque eu sinto que tem um olhar que as outras pessoas não vão ter da gente". Segundo a jornalista 4, ainda existe esse lugar onde as pessoas diminuem o jornalismo de moda por pensarem que ele não é sério. “Eu acho que jornalismo de moda também é serviço, sabe? Você pode contar a história do mundo pelas lentes da moda, assim. Eu acho que se alguém ainda acha que a moda é superficial, essa pessoa é ignorante”.
Quanto as principais diferenças entre o que é retratado nos filmes e o dia a dia das redações, a jornalista 1 comenta que a vida real é "bem mais pé no chão do que é retratado". A jornalista 2 também afirma que todos que entram em uma redação de moda, chegam com uma visão romantizada do ofício. Já a jornalista 3 afirma que no primeiro dia de um jornalista na redação, o deslumbre costuma acabar, e não porque as coisas sejam diferentes do que a mídia tende a retratar, mas sim, porque o trabalho é tanto que consome as profissionais. Para ela, o maior dilema do jornalismo de moda hoje, principalmente no Brasil, é o sucateamento das redações. "Você tá ganhando tão pouco pra trabalhar tanto, mas tanto, mas tanto, que eu acho que você não tem nem energia pra ter esse deslumbramento. Porque você tá preocupado com muitas coisas, tem muita coisa no seu prato". A jornalista 4 também concorda que jornalistas de moda trabalham muito, e afirma que "é uma rotina de louco". Para ela, é uma profissão onde é preciso fazer muitas concessões: "você tem que aprender a jogar o jogo".
As entrevistadas percebem que apesar de algumas similaridades retratadas no cinema – sejam elas boas ou ruins – o dia a dia de trabalho é muito diferente e extremamente relevante, ao contrário do que o cinema representa muitas vezes.
Sabe essa sensação que a Andy [de o Diabo Veste Prada] sente quando ela vai no primeiro desfile de moda dela, ou que a Becky Bloom sente quando ela entra nas lojas, ou que... Enfim, que essas garotas sentem quando elas estão sentadas nessa roda, que elas precisam impressionar a editora-chefe? Tudo isso é real. Eu acho que tudo isso, estar dentro de uma redação de moda é a coisa mais deliciosa do mundo, assim, eu amo muito o que eu faço, então eu não me imagino fazendo nada além disso. Então eu acho que tudo isso é real, você realmente está em contato com pessoas muito criativas, com coisas lindas, você vê todas as peças, sabe, você entra nos guarda-roupas dos stylists, vê as araras nos acervos e, sabe, folheia as revistas antigas e vê todas as referências e... Tudo isso é real, no sentido de similaridades. - Jornalista 4
Em contrapartida, a jornalista 3 afirma que quanto mais a pessoa sonha, menos dinheiro ela pede. “Os direitos trabalhistas ficam meio borrados quando a pessoa quer muito aquilo. E não é difícil, tipo, eu falar com um colega de profissão, que alguém pergunta assim na roda, que que vocês estariam fazendo se vocês não estivessem sendo jornalistas de moda? E ninguém sabe o que falar. Porque eles cresceram vendo esses filmes, eles cresceram alimentando essa mídia e sempre cresceram sonhando com isso”.
Falando de rivalidade feminina, a jornalista 4, comenta que sempre foi um tópico muito abordado no cinema, principalmente no início dos anos 2000, com a chegada das supermodelos e toda a super competitividade da indústria da moda. Para ela, não apenas os filmes, mas a sociedade em si, sempre vai tentar colocar mulheres umas contra as outras, principalmente por ser ainda muito sexista. Por mais que saiba que ainda aconteçam rivalidades no ambiente de trabalho – mesmo que não no nível que Hollywood gosta de retratar – ela nunca experienciou nada do tipo. Na opinião da profissional, a indústria já evoluiu muito. “Eu aprendi a fazer jornalismo dentro de uma redação de revista. Eu tive uma editora que literalmente me poliu pra virar a melhor versão da melhor escritora que eu poderia ser. Então, eu aprendi tudo o que eu sei com mulheres dentro de uma redação. Eu acho que não tem nada mais bonito que isso”.
A jornalista 5 acredita ser apenas um estereótipo dos filmes, visto que encontra certas rivalidades ocasionalmente em ambientes de trabalho, não necessariamente ligados à moda: "Em qualquer lugar a gente pode encontrar uma rivalidade. Mas acho que não é uma coisa de ‘ah, eu vou trabalhar com moda, vai ter alguém para eu passar a perna’, sabe?”.
Para a jornalista 3, isso ficou no passado. Ela afirma que o meio jornalístico atual está muito complicado, e as dificuldades do dia a dia fazem com que as jornalistas se unam.
A gente vai conversando, não tem mais aquela coisa de, ‘aí, é o concorrente’. Não, gente, tá todo mundo na merda. Tá tudo bem. Eu falo isso porque, assim, tá difícil pra quase todo mundo, sabe? [...] Porque hoje é uma coisa meio, me ajuda, eu te ajudo. Eu lembro que o meu primeiro São Paulo Fashion Week, eu ia cobrindo beleza, as meninas da Glamour, que eu dei uma trabalhada agora, de beleza, elas sempre me falavam, ah, o backstage tá livre agora, vai lá. E eu era da Marie Claire. A coisa tá menos de, tipo, como aconteceu em De Repente 30, ah, e ela foi pra outra revista, não sei o quê. Hoje, se você for pra outra revista, eles estão super felizes com você. Porque ninguém tem a ver com corporativo, sabe? A gente tá feliz de ver o nosso colega jornalista feliz.
Que na frente das câmeras de um desfile de moda as jornalistas evidenciam um lifestyle de glamour, nós já vimos… Também não é segredo que essas profissionais recebem alguns mimos de marcas e convites para eventos super especiais. Mas e quanto ao dia a dia mesmo, na frente do computador da redação, como funciona? A jornalista 1 comenta que ao começar a trabalhar em uma redação de fato, percebeu que o dia a dia era na verdade uma rotina bem comum. “Era como uma sala normal, com pessoas vestindo as roupas de todo dia, roupas repetidas. Nada de grandes conjuntos, de grandes marcas. Então, vamos dizer assim, que aquela visão romantizada acabou, aos pouquinhos, tendo seus pequenos choques de realidade, vendo que a gente, como jornalista, também é muito... muito daquele proletariado bem do dia a dia, de ter que correr atrás das pautas, de escrever as coisas em cima da hora, [...] ou sempre tendo que tentar inventar uma roda, assim, para tentar escrever sobre um assunto que ninguém escreveu ainda e tentar vender essa matéria”.
A jornalista 2 também comenta: “Quem acha que o jornalista de moda vive de grife dos pés à cabeça, não sabe quando a gente ganha”. A jornalista 5 comenta que isso vem de um estereótipo dos filmes. Quando ela cresceu assistindo a esse tipo de comédia romântica, costumava pensar que quando fosse jornalista ganharia muito: "a gente vai ficar rica aos 20. Vou comprar uma casa, várias bolsas de luxo...". Hoje ela percebe que é uma construção a ser feita ao longo da carreira.
Quanto a principal diferença do cotidiano, em unanimidade as profissionais citam os salários e a quantidade de horas trabalhadas. A jornalista 3 aponta que “a diferença é que a gente tem tanto trabalho que não dá tempo de almoçar com as amigas. Ir atrás de um homem e fazer a vida dele um inferno só por causa de uma matéria? Aquele tempo todo para uma matéria que elas têm... Um filme inteiro sobre um editorial? Amor, eu tenho que fechar quatro dessas por dia. [...] Tem hora que a gente fecha a revista, três da manhã a gente tá lá fechando a revista. Entendeu? As coisas acontecem de uma maneira bem diferente”.
Mesmo assim, ela diz que é bom sonhar com um jornalismo romantizado porque, mesmo depois da desilusão ou da quebra de expectativas, o trabalho de jornalista ainda é muito plural, e por isso é importante ter noção de si mesma além da revista, ou do próprio trabalho.
"É uma coisa natural da vida. Mas tenha noção de quem você é. Porque quando essa quebra de expectativa acontece, ela não pode ser uma dúvida. Tipo, se você sair de uma revista, tudo bem, tem outra. Eu posso fazer outras coisas. [...] Tem muita coisa legal acontecendo, mas você precisa ter noção de si antes do seu trabalho, sabe? Porque senão te engole”.
Ela também diz que as mulheres já estão começando a repensar o que ser jornalista de moda significa para elas.
As jornalistas concluem que, em geral, as representações da figura da jornalista de moda feitas pelo cinema são boas. Para elas, como em qualquer outra profissão retratada pelas grandes mídias, existem pontos positivos e negativos, mas que contribuem para construir novas visões e significados ao longo do tempo. Elas revelam um sentimento de nostalgia e carinho em torno das comédias românticas, que de certa forma, fizeram parte de suas trajetórias profissionais e de vida.
esse texto foi tudo que eu precisava ler hoje. como uma estudante de publicidade que tbm tem vontade de seguir carreira escrevendo artigos de moda, tbm penso que a gente precisa estar ciente das vantagens e desvantagens dessa profissão. é sobre querer trabalhar com o que gosta de fazer, mas tbm de saber que nem tudo são flores. e msm estando a par de tudo, ainda pretendo seguir com isso porque não me enxergo fazendo outra coisa. enfim amei <3
meu deus que texto SENSACIONAL, sério, parabéns, muita informação boa e muito gostoso de ler
eu faço jornalismo e concordo com tanta coisa que foi dita, nem vou me alongar mas durante a leitura só consegui balançar a cabeça e concordar com cada palavra
amei